Steve Jobs apresenta o iPad e bate de frente com Kindle e netbooks. Aparelho, que promete esquentar o mercado de filmes e livros digitais, aponta para o “fim da era PC”
“A última vez que houve tamanha excitação por causa de uma tábua (tablet, em inglês), ela tinha alguns mandamentos gravados nela”, escreveu com rara ironia e precisão o jornal norte-americano Wall Street Journal, em referência a imensa expectativa despertada por um, até então, não confirmado tablet (um minicomputador com tela sensível ao toque, sem mouse ou teclado) da Apple, no final do ano passado. Um detalhe: como de costume ninguém na empresa, que tem diversos produtos na coleção de design do Museu de Arte Moderna de Nova York, confirmava a existência do aparelho.
Nada disso parecia importar, o histórico de inovações da Apple somados ao culto em torno da sua marca e a sua impressionante ressurreição na última década eram mais do que satisfatórios para justificar o burburinho. Assim, apenas alguns rumores e mais tarde a confirmação de que a Apple faria um anúncio em janeiro deste ano foram suficientes para que as ações da companhia batessem sucessíveis recordes na bolsa eletrônica Nasdaq. Nada de muito diferente por aqui também, nos últimos anos o lendário fundador da Apple, Steve Jobs, vem lapidando quase que a perfeição a estratégia de lançamento dos seus novos produtos. O absoluto silêncio é sua maior arma. David Yoffie, um professor de Harvard, estimou que nos meses entre o anúncio e a venda do primeiro iPhone em 2007, a Apple tenha conseguido mais de US$ 400 milhões em propaganda gratuita, apenas se mantendo completamente calada, alimentando o frenesi da mídia mundial. Algo bastante parecido – e em um escala talvez ainda maior – foi se desenhando nos últimos meses em torno de um tablet da Apple. Mas uma pergunta ao menos continuava sem resposta: tamanha expectativa conseguiria ser saciada?
Finalmente, na tarde da última quarta-feira, 27 (de janeiro), Jobs subiu ao palco, em São Francisco, ainda magro em decorrência do tratamento de um câncer, para o tão esperado anúncio. Ele vestia seu tradicional uniforme (camiseta gola alta e manga cumprida preta, além de uma surrada calça jeans e um tênis New Balance cinza). Como também lhe é característico, Jobs não poupou adjetivos e elogios ao novo gadget, o iPad, que chega as lojas em 60 dias nos Estados Unidos e outros países. Para o Brasil, não há previsão. Sua primeira frase no evento não deixava dúvidas de que ele queria – mas será que conseguiria? – fazer história novamente: “queremos começar 2010 apresentando um produto verdadeiramente mágico e revolucionário”. Emissoras de televisão nos EUA chegaram a interromper a sua programação normal para mostrar o novo aparelho. Sem fazer muito suspense, algo que não lhe é usual, Jobs perguntou: “Todo mundo usa um smartphone ou um laptop hoje em dia, há espaço para uma terceira categoria de aparelhos entre um e o outro?”
Jobs e toda a indústria de eletrônicos sabem a resposta a essa pergunta desde outubro de 2007, quando a taiwanesa Asus lançou o primeiro netbook, um minilaptop que não servia para fazer quase nada longe da web. Ignorado pela imprensa especializada, o aparelho foi um gigantesco sucesso, copiado por todas as fabricantes, mas solenemente esnobado pela Apple.“Os teclados são apertados, o software é terrível e o hardware podre. Jamais colocaria a nossa marca nisso”, disse, em março do ano passado, Tim Cook, diretor operacional da Apple e na época ocupando interinamente a presidência no lugar de Jobs. Os netbooks, no entanto, tornaram-se um fenômeno de vendas e, entre o pioneiro EeePC e os últimos lançamentos, passaram por mudanças tão profundas que é difícil perceber o que os diferem dos seus irmãos mais velhos, os notebooks.
Hoje, os netbooks atendem com precisão a quem deseja um equipamento mais prático e portátil do que um notebook ou espera mais conforto e facilidade de navegação do que oferece um smartphone. O muito bem-sucedido netbook, no entanto, é um dispositivo voltado principalmente para o trabalho e não para a diversão. Eis o nicho que Jobs torce para ser amplo e com o qual sonha atender com o iPad. “Vejo muito potencial neste produto e não tenho dúvida de que inúmeros concorrentes irão ser lançados antes do final deste ano”, disse à Dinheiro Rob Enderle, presidente da consultoria norte-americana Enderle Group.
Entre as críticas que o aparelho recebeu, as mais freqüentes eram referentes à ausência de uma câmera e de capacidade multitarefa. O iPad apesar das suas limitações, aposta em múltiplas funções para atrair o público. Em setembro do ano passado, ao ser questionado sobre o leitor de livros eletrônicos da Amazon, o Kindle, pelo The New York Times, Jobs disse: “tenho certeza de que sempre haverá dispositivos dedicados (com apenas uma função), e eles podem ter algumas vantagens em fazer apenas uma coisa. Acredito, no entanto, que aparelhos com múltiplas funções vão ganhar o dia, porque as pessoas não vão querer pagar por aparelhos que só servem para fazer uma coisa”.
E é exatamente isso que o iPad é. Ele pode não ser “o” melhor em algumas coisas, como leitura de livros, por exemplo, mas permite ainda navegar na internet, enviar emails, ver filmes, seriados, e ouvir músicas, organizar fotos, jogar games. Embora não faça ligações telefônicas, o Skype é compatível. Enfim, assim como o iPhone e o iPod touch suas grandes inspirações, o iPad é um marco da convergência, que editoras de livros, revistas e jornais, além de estúdios de cinema e emissoras de televisão, esperam possa esquentar a distribuição digital de seu conteúdo (filmes, livros, etc.), assim como o iPod o fez com a música.
E mais: ao contrário de qualquer concorrente que possa surgir, o iPad já nasce com 140 mil aplicativos, desenvolvidos originalmente para os seus irmãos mais velhos, disponíveis. Assim como os netbooks e smartphones, o tablet da Apple traz em sua gênese os principais conceitos da vanguarda de hábitos digitais, como o nomadismo e a computação em nuvem. Enquanto um notebook ou um desktop tradicional são principalmente usados para rodar programas que estão instalados no computador, o tablet aposta na internet e aplicativos leves que não raro são voltados para o uso da web.
O jornalista norte-americano Nicholas Carr vai mais além. Para ele, “o lançamento do tablet marca o fim da era PC”. Carr é autor do livro A Grande Mudança (Editora Landscape), em que defende que a computação em nuvem está mudando a sociedade de forma tão profunda quanto a energia elétrica nos últimos cem anos. Excessos à parte, Carr argumenta que os velhos PCs se tornaram dinossauros, máquinas muito complicadas para as necessidades básicas das pessoas hoje em dia. Enfim, a expectativa em torno do tablet pode parecer exagerada agora (a queda nas ações da Apple, registradas no dia posterior ao anúncio do aparelho, são o mais claro sinal de que as expectativas geradas eram difíceis, senão impossíveis, de serem alcançadas), mas é nas inúmeras possibilidades que o iPad trás consigo e ainda não podem ser plenamente compreendidas hoje que está o seu eventual potencial revolucionário. “O iPad quer ser o aparelho matador para a era da nuvem, uma máquina que vai definir essa nova era da computação como o Windows definiu a era anterior (a do computador pessoal)”, escreveu Carr, em um artigo publicado na New Republic.
Se a profecia irá se concretizar é cedo para dizer. Por enquanto, como descreveu Steve Jobs, o iPad é apenas “muito mais íntimo do que um notebook, muito mais eficiente que um smartphone e tem uma tela linda”.
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Texto complementar a matéria publicada por@brunogalo e @rmanzoni na revista ISTOÉ Dinheiro em 5 de fevereiro de 2010
Crédito das fotos: turboalieno e jesusbelzunce